Arranjos que mudam tudo e arranjos que mudam pouco, Schoenberg e Pixinguinha
- Guilherme Sparrapan
- 25 de nov. de 2022
- 5 min de leitura
Reelaborar
Reelaborar ou criar um arranjo musical é, de uma maneira geral, trocar o meio original da música. Entretanto essa mudança tem que ser feita de tal maneira que, mesmo com elementos diferentes da versão original, os ouvintes reconheçam que aquela música ainda é ela mesma. A grande questão é que cada arranjo tem uma finalidade, um propósito diferente.
Reconhecer uma música à primeira vista (ou à primeira "ouvida") pode ser o intuito de um arranjo. Também pode ser o objetivo, criar um mistério e deixar a música mais misteriosa. Para todas as situações que demandam uma atmosfera sonora diferenciada, existe um arranjo que deve ser diferenciado. Sendo assim há arranjos que trocam mais do que os aspectos ferramentais da música, eles alteram também os aspectos estruturais (falo a respeito desses aspectos em mais detalhes neste post). Melhor dizendo, existem situações que pedem arranjos musicais diferentes, elaborados com outros elementos musicais (para mais detalhes sobre esses termos, seguem aqui os links para meus textos anteriores que abordam isso).
Para quem arranja, o objetivo principal tem que ser satisfazer a necessidade que o levou a criação daquele arranjo.
Das necessidades…
Vou dar dois exemplos dos mais recorrentes da necessidade de se realizar um arranjo.
Músicas que precisam de uma nova instrumentação
Ou seja, que precisam ser arranjadas para outros instrumentos que não os originais, mas que não podem sofrer alterações estruturais.A música tem que continuar sendo reconhecida o mais próximo da atmosfera original (ex. Arranjo para casamento, cerimônias, e afins).
Músicas que precisam de uma nova "roupa"
Por outro lado, há também arranjos que precisam ser mais elaborados, ou simplificados, em aspectos estruturais para contemplar um outro tipo de escuta (arranjos para uma orquestra em uma sala de concerto, arranjos com fins didáticos)
Dos que não sofrem alterações estruturais
Para falar deste tipo de arranjo vou voltar ao início do século XX e dar como exemplo um dos muitos trabalhos de Arnold Schoenberg.
No início do século XX, por volta da década de 20 surgiu a Verein für musikalische Privataufführungen em Viena, Áustria. O intuito de Schoenberg em criar essa Sociedade era de propiciar a audição de importantes obras musicais da época a fim de elevar o entendimento e compreensão das inovações musicais que então vinham surgindo. Trocando em miúdos, a iniciativa tinha em seu cerne um cunho pedagógico e buscava driblar uma grande crise inflacionaria pela qual a Áustria passava. Sendo assim a sociedade era composta por Schoenberg e diversos outros músicos, instrumentistas, compositores, alunos e professores. A instrumentação era de um conjunto de câmara: cordas solo, piano, harmonium e instrumentos de sopros solo.
Não era a intenção da sociedade se restringir apenas ao repertório de câmara, portanto, era necessário arranjar obras orquestrais para a formação disponível. Os critérios dessas reelaborações mantinham-se sendo clareza e fidelidade ao discurso musical, para que as pessoas que assistissem as performances pudessem apreciar a música mais próxima do original criado.
Dentro do catálogo da sociedade, encontra-se um arranjo de Schoenberg para a obra de Debussy, Prelude a l'apres midi d'un faune. Esse arranjo surgiu a partir da constatação de Schoenberg e dos membros da Verein que a obra de Debussy era radical e muito influente, não podendo ser deixada de lado a oportunidade de executá-la. É sabido que Schoenberg fez diversas notas a respeito de como o arranjo deveria ser feito e que foram dois de seus alunos (Benno Sachs e Alban Berg) que realmente colocaram "a mão na massa" e escreveram as notas. Sendo uma sociedade de estudantes e professores, o arranjo com certeza foi discutido e aprimorado em conjunto o que permitiu manter todas as cores, humores, intimidade e clareza da versão original.
Segue aqui um link para apreciação desse arranjo, bem como um segundo link com a versão original.
Versão original: https://www.youtube.com/watch?v=Y9iDOt2WbjY
Dos que mudam estruturalmente
Uma das figuras mais importantes da música popular brasileira (se não a mais importante) é Pixinguinha. A biografia do compositor, arranjador e multi-instrumentista é indispensável para todo músico brasileiro. O Instituto Moreira Salles tem um acervo com diversos relatos, entrevistas, histórias e arquivos com ótima organização e qualidade, tornando a visita ao site um prazer. Segue o link: https://pixinguinha.com.br/vida/
De toda essa história vou separar um momento em específico: arranjo de 1938 da música Carinhoso.
A música original foi e ainda é "pano pra muita manga". Desde a data de sua composição, que o próprio Pixinguinha fornece várias, até as críticas iniciais da época e sua inegável importância histórica, fazendo-a presente até os dias de hoje. Tem duas partes (forma canção, ABAB) e teve sua primeira gravação em 1928, pela Orquestra Típica de Pixinguinha e seu irmão Donga. Ela pode ser considerada como a versão "original" mas acho que algumas considerações sobre o estilo têm de ser feitas. No estilo do choro, alterar alguns acordes, colocar ornamentos melódicos, contrapontos de improviso, ou seja, fazer alterações instrumentais, fazem parte do estilo. Por isso cada gravação é diferente da outra nesses aspectos. O que é pouco alterado no estilo, ou alterado bem singelamente, é a a forma. Isso quer dizer que, apesar de termos diferentes elementos em diferentes gravações, a maioria das gravações e arranjos do Carinhoso respeitam a forma canção.
Aqui segue um link do YouTube para essa gravação: https://www.youtube.com/watch?v=PEVMeWnBwfQ
A título de curiosidade é interessante dizer que a famosa introdução do choro surgiu posteriormente, quando a letra de João de Barro passou a fazer parte da música.
Nas décadas de 30, 40 e 50 do século XX, a Rádio Nacional tinha enorme importância cultural em todo território brasileiro, e a promoção de uma cultura brasileira fazia parte dos planos das autoridades governamentais da época. Sendo assim, diversos programas divulgavam a música brasileira de diversas maneiras. Em muitos deles buscava-se a união da música popular com a música de concerto, ou colocando de outra maneira, produziam-se arranjos de músicas populares para orquestras de formação tradicionalmente européias.
Deixando de lado a diferença do meio, ou seja, a instrumentação, uma das principais diferenças entre a música considerada popular e a música considerada erudita (ou de concerto) está na forma. Enquanto a primeira apresenta diversos temas e improvisos/variações, dependendo do estilo, a segunda tem em sua forma o desenvolvimento de ideias musicais, também a depender do estilo/época.
O arranjo que selecionei aqui foi escrito em 1938 para comemorar o 5º aniversário da direção artística de César Ladeira na Rádio Mayrink Veiga. Ele pode ser encontrado editado no livro Pixinguinha – Outras Pautas (IMS/SESC/IOESP, 2014). Nele, Pixinguinha utiliza motivos das frases do Carinhoso e escreve verdadeiros desenvolvimentos musicais.
Pequeno guia de escuta
A gravação que está no link abaixo é de um concerto de 2014, para o qual Paulo Aragão fez pequenas adaptações instrumentais. Esse pequeno guia serve para salientar as diferenças estruturais que Pixinguinha colocou nesta versão, se comparada a original.
A introdução é prolongada, utilizando pequenos motivos da música como perguntas e respostas, para então ouvir-se a melodia inicial como na versão original.
A música segue como no original (depois de um belo texto declamado). É quando termina a parte B que Pixinguinha cria pontes, faz modulações, altera ritmos e assim por diante.
A principal mudança formal que percebo é a criação de diferentes climas, humores. Para isso frases são particionadas e seus motivos re-combinados numa nova textura, menos direta. Fazendo um paralelo ao que denominamos desenvolvimento em formas clássicas.
Para concluir o arranjo partir do minuto 6"47' desta gravação, o tema B é retomado mais próximo ao original. Entretanto novos elementos rítmicos e harmônicos que foram apresentados ao longo do arranjo, continuam aparecendo.
Link do arranjo: https://www.youtube.com/watch?v=TSsxycFELxw
Para conhecer mais versões do Carinhoso, no site do Instituto Moreira Salles há uma vasta lista de interpretações da obra: https://pixinguinha.com.br/discografia/carinhoso-2/
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